“Eneida” – Relatório de Leitura

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Li o livro a tanto tempo e escrevo este post de memória. Não acredito que isto defasará o relato da minha experiência, porque ainda hoje, sinto em mim as sensações proporcionadas por sua leitura. Com base nisto, posso fazer uma narrativa de como tudo transcorreu, presenteada com o devido distanciamento, próprio da maturidade, de quem já tudo digeriu.

Caramba! Lembro-me de estar com muito receio de ler Eneida. Pelo menos na minha cabeça iria se tratar de um livro inexpugnável, indecifrável. Algo talhado apenas para iniciados. Agora, iniciados no quê, eu não sei. Em latim? Grego? Poesia épica? Círculos de alta cultura? Seria o leitor típico deste livro uma daquelas pessoas que conhecem mitologia a fundo? Que lembram daquelas datas históricas esquecidas com a mesma facilidade que a maioria dos brasileiros lembra os placares dos campeonatos e copas? Esta pergunta, dúvida, seja lá o que for, me inibiu por um momento de começar a ler o livro.

Resolvida a lê-lo, minha surpresa não poderia ser maior. Li com gosto, e de modo geral, gostei. Posso dizer que o que mais me espantou nesta leitura foi a identificação com os personagens. Eles são tão parecidos conosco! Como se não tivessem passado milhares de anos desde que foi escrito.

È uma história muito bela, com todos aqueles elementos que fazem um novelão ou um blockbuster Hollywooodiano. E tem para todos os gostos: fãs de ação, fãs de romance, fãs de suspense, todos serão atendidos por esta trama atemporal!

Eis a beleza da obra de Virgílio, ela sempre será atual, porque alcançou um nível de entendimento do ser humano que é imutável, o qual não pode ser forjado pois provém da sensibilidade de um grande e universal artista.

Como comentei no livro, apenas uma parte me entediou, uma que gastou muitas páfinas para descrever um ritual, o qual não consegui visualizar com facilidade, mas fora isso, a aventura de ler “Eneida” me arrebatou.

Espero que faça o mesmo por vocês! Boa leitura.

Michelangelo Buonarotti e o Grupo de Laocoonte – Uma história de genialidade, sensibilidade, coincidências e suspeitas.

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O Grupo de Laocoonte. A imagem veio daqui.

Como faço as pesquisas para os posts dos livros concomitantemente com a sua leitura, ganho tempo para a produção textual do blog, mas com “Eneida” algo curioso aconteceu. Como em um simples levantamento acabei encontrando todas as informações necessárias, posterguei qualquer busca mais elaborada sobre as palavras que compõem o seu glossário e rol de personagens. Foi assim que compreendi a dificuldade dos escavadores do túnel de metrô de Atenas durante as Olimpíadas, e dezenas de outras cidades que encaram a modernidade ostentando ainda um passado milenar. A cada página lida, um manancial de histórias. Cada personagem tornou-se um tesouro, e o primeiro deles foi Laocoonte.

Bastou recomeçar a investigação após ler a epopéia, para deparar-me com dezenas de assuntos e curiosidades que poderiam vir a se tornar posts no blog. Esta é uma delas, os fatos por trás da descoberta da estátua que retrata o momento que Laocoonte e seus filhos são atacados pelas serpentes enviadas por Apollo. Cena descrita por Virgílio nos capítulos iniciais de “Eneida”.

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Trecho da obra de Plínio em latim que cita a escultura.

“O grupo de Laocoonte” é uma peça de arte da Antiguidade Romana (data de por volta de 40-37 A.C) e permaneceu durante muitos séculos dada por perdida. É citada na obra do historiador “Plínio, o velho”, e seu último paradeiro conhecido foi o palácio do Imperador Romano Tito. Foi então que quase 1.400 anos depois ela reapareceu.

O Inacreditável

Um belo dia, um dos maiores gênios da humanidade, tinha feito uma pausa nos seus trabalhos habituais para desfrutar um almoço na companhia de um amigo. Este também um nome de peso na história ocidental. Neste interim um cidadão romano veio contar-lhes que havia descoberto o que parecia ser uma escultura clássica perdida, ele a havia a encontrado durante as escavações para a reforma de sua vinha.

Só a descrição dos acontecimentos, já parece trama de filme surrealista. Como se Dalí e Buñuel tivessem roteirizado o destino. Seus personagens estão diretamente ligados aos pilares da arte renascentista e por tabela aos clássicos.

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Gravura: Ruínas das termas de Tito. A imagem veio daqui.

O cidadão descobridor acreditava tratar-se de uma peça grega. Como naquela época, Roma vivia um furor no revival das artes clássicas graças ao renascimento, a maioria das pessoas sabia identificar uma obra importante, já que o convívio com obras gregas como aquela escultura não era um problema nem na Itália de outrora, nem na de agora.

O tal cidadão chamava-se Felice di Fredi. Sua vinha situava-se em uma propriedade localizada na zona das antigas Termas de Tito.

O Gênio em questão era nada mais, nada menos que Michellangelo Buonarotti, responsável por algumas das mais importantes, e belas, obras de arte da história da humanidade. Entre elas o teto da Capella Sistina no Vaticano e a Estátua de Davi.

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Basílica de São Pedro. A imagem veio daqui.

O amigo em questão era Giuliano Sangallo, arquiteto do Papa Júlio II. Figura de importância por sua participação em grandes obras artísticas (Basílica Della Madonna, Basílica de Santa Maria Maior e Basílica de São Pedro) e relevantes acontecimentos históricos (Foi Engenheiro Militar do Papa, quando este encampou várias batalhas durante seu pontificado, principalmente para deter o domínio francês no território italiano).

Após o relato, ambos dirigiram-se imediatamente à vinha. Ao chegar lá, Michelangelo e Giuliano prontamente reconheceram a escultura. Ela estava quebrada em cinco pedaços, e impressionou Buonarroti pela qualidade do mármore esculpido e por sua influência helenística. Alguns dias depois Sangallo, o arquiteto, foi quem comunicou diretamente ao Papa a descoberta, que ato contínuo comprou a escultura por 4.140 ducados, e levou-a para o Palácio Belvedere no Vaticano. Além dos ducados, Felice foi recompensado com uma pensão vitalícia de 600 ducados anuais e teve o seu papel na descoberta referenciado em seu túmulo.

O Braço Quebrado.

Contudo a escultura, apesar de muitíssimo bem conservada para seus 1.400 anos, estava danificada, pois faltava um dos braços da figura que representava Laocoonte.

Uma espécie de concurso/banca, com grandes artistas da época, foi convocada pelo Papa Júlio II para definir qual deveria ser a posição original do braço na escultura. Rafael Sanzio, um dos grandes nomes do renascimento presidiu o júri. Até Bernini deu seu palpite. Entre as hipóteses, a de maior consenso (e escolhida) foi a de que o braço estaria esticado e Laocoonte reagindo ao ataque das serpentes enviadas por júpiter para matar a ele e seus filhos castigando-os por sua ousadia de atirar uma lança contra o Cavalo de Tróia.

Laocoonte e seus filhos - Intelectual - Kahlmeyer

Versão da estátua com o braço esticado. A imagem veio daqui.

Vários estudos de proporção e harmonia foram usados como argumento. Mesmo como voz solitária, Michelangelo insistia que a imagem tinha o braço flexionado, mas foi voto vencido. A escultura foi “refeita” e um braço esticado foi adicionado a ela.

Em 1957, cinco séculos depois, o braço da escultura foi encontrado e tinha a exata posição que Michelangelo previra: estava atrás da cabeça e flexionado para trás. Seria esta conclusão fruto da pura sensibilidade de um gênio?

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O Grupo de Laocoonte acabou se transformando em uma importante referência artística para a Europa e o ocidente, sendo, portanto motivo de cobiça de outros países, em detrimento ao Vaticano, nos séculos seguintes.

Durante o Quinto Concílio de Latrão, quando o Papa Leão X assinou diversos tratados para regularizar a Igreja Católica, encerrar o cisma do ocidente, e expurgar de vez o fantasma do antipapa, uma das exigências de Francisco I Rei da França para concordar com os termos do Vaticano para a reunificação do pontificado foi a de que o Grupo de Laooconte passaria a pertencer à França.

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Escultura de Baccio Bandinelli. A imagem veio daqui.

Mas como o Papa também era amante da arte clássica (mais um!) descumpriu o tratado e ao invés de enviar o Grupo, encomendou ao escultor Baccio Bandinelli uma cópia (com o braço esticado) a ser enviada para a França. Esta cópia acabou sendo a base para uma série de versões menores em bronze que circulam o mundo.

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Napoleão Bonaparte. A imagem veio daqui.

Quando conquistou a Itália em 1799, Napoleão Bonaparte deu cabo ao desejo francês de possuir o grupo de Laocoonte, e com toda a pompa e circunstância levou finalmente a estátua para o museu do Louvre em Paris como espólio de guerra.

Depois da queda de Bonaparte a estátua foi restituída ao Vaticano em 1816, como um gesto de gentileza e diplomacia do governo Inglês, que encerrou as pilhagens napoleônicas e deu a estátua o seu lar derradeiro.

Controvérsias e “Lenda Urbana”.

Uma lenda surgiu depois da descoberta da estátua. Ela diz que Michelangelo, ansioso por ajudar sua família que passava por problemas, esculpiu ele mesmo uma versão da estátua baseada nos relatos de Plínio. E como ainda não era reconhecido como hoje, forjou a sua descoberta para assim aumentar o valor da obra de arte.

Depois de esculpir, fragmentou a estátua em vários pedaços e enterrou ele mesmo em local insuspeito (as antigas termas), associou-se a Felice di Fredi e combinou o dia e horário da “descoberta”, quando estaria casualmente almoçando com seu amigo e junto a ele referendaria a autenticidade da peça.

Segundo a lenda Michelangelo, não teria sido tão influenciado pela estátua como dizia, pois havia sido ele mesmo o autor da obra. Algumas fontes no passar dos séculos, fazem menção ao fato da obra, apesar de possuir fortes elementos gregos, também materializar todos os ideais da própria escultura renascentista, como a virilidade, a naturalidade, a força, a nobreza e a humanidade.

Durante toda a sua existência, o império romano sempre rivalizou com outras civilizações que lhe eram superiores em produção artística e cultural, como os gregos, os egípcios, os persas e os árabes.

Até o renascimento eles foram (por seu ímpeto e sucesso militar) os “brucutus” da antiguidade, os emergentes em termos de arte. Sendo assim, a ânsia de ter obras que demonstrassem a sua superioridade, ou qualquer indício de supremacia histórica sobre povos rivais antigos era muito bem vinda.

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Capela Sistina – Vaticano. A imagem veio daqui.

Ciente disso o Papa Júlio II era um entusiasta das artes. Queria levantar a bola do império romano e demonstrar o “conteúdo” dos compatriotas. A notícia de uma descoberta desta magnitude certamente chamaria a atenção do Papa e este não pouparia esforços para adquirir a peça (como de fato o fez). Apesar de para termos de comparação tratar-se de uma escultura grega, ainda assim os romanos teriam a sua glória por a terem resgatado e saírem dessa história como guardiões, descobridores e entusiastas das artes, uma posição mais almejada do que a de meros conquistadores ou destruidores do patrimônio alheio.

Conta ainda a lenda que a certa altura dos acontecimentos, o Papa desconfiou da tramóia de Michelangelo, e que a banca era apenas um subterfúgio para descobrir a verdade, ou validar de uma vez por todas a autenticidade da obra.

Dizem que logo após a banca, o Papa ciente da tramoia de Michelangelo, optou por permitir a autenticação da escultura. Apaixonado e impressionado pela capacidade do artista, desta data em diante tornou-se seu principal patrocinador, contratando-o para entre outras obras o seu próprio e monumental mausoléu, o qual atestaria para a eternidade a supremacia da arte e do pensamento romano. A descoberta posterior do braço, na exata posição relatada por Michelangelo aumentou as especulações em torno da lenda de que havia sido ele mesmo o autor da obra.

Testes posteriores na estátua mostraram que seu mármore não era grego, e sim italiano. Outro teste aventou a possibilidade dela ter sido esculpida no século I ou II AC.  Assim como alguns estudos apontam que trata-se de uma versão romana de uma escultura em bronze de 140 AC.  Mesmo assim, a maioria das referências tratam a estátua como sendo do trio de escultures da ilha de Rodes: Agesandro, Atenodoro e Polidoro. Ou seja, detalhes importantes da obra continuam desconhecidos, bem como a data exata da peça original.

Embora este seja um blog de literatura clássica, abro aqui um espaço para especulação à la revista “Contigo” e congêneres:

E você? O que acha? Coincidência? Malandragem? Mão do destino? Especulação? Ou prova da sensibilidade incontestável de um gênio?

Fontes:

http://www.raulmendessilva.com.br/brasilarte/temas/laocoonte.html

http://turismoemroma.com/museu-do-vaticano-laocoonte-michelangelo/

http://www.todasasmusas.org/03eneias_tavares.pdf

http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Pliny_the_Elder/36*.html

“Eneida” – Nota de Conclusão

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Foi melhor do que eu esperava e atendeu a todas as minhas expectativas. O livro mais importante sobre a história do ocidente, pois se você pensar em “Odisséia” e “Ilíada” vemos a civilização grega em profundidade, mas em “Eneida” vemos outros povos importantes para a formação ocidental, e o que acontece é o êxtase e a indicação de que o ocidente nasceu de uma inequívoca vocação de perpetuar apenas o que no velho mundo era tido como grande.

Vemos a referencia aos gregos e troianos, como os responsáveis por dois dos três pilares que formam o ocidente. A saber: A filosofia grega, e o direito romano. Embora tenha consultado alguns livros e uma dezena de entendidos a relação entre Tróia e o direito romano permaneceu obtusa. Virgílio faz uma menção ao fato de troianos serem o povo das leis, mas não encontrei uma referência exata sobre isso no direito romano. Os autores endossam Tróia como influência na formação da cultura romana.

O ocidente foi primordialmente um refúgio. Uma terra nova, onde se construiria um novo mundo, reunindo povos e nações. Conflitos sucederam-se nessa formação, mas o importante é que o nosso legado tornou-se uma mistura muito rica da qual brotaram frutos prósperos.

É uma delícia ouvi-los falar sobre o latim e valorizá-lo, assim como é aconchegante ver semelhanças culturais em uma narrativa tão longínqua. Eneida foi um impacto de cima a baixo. Emocionou-me, chorei e contorci de exasperação. Identifiquei-me com tudo e o que mais me espantou foi o quanto aquelas pessoas pareciam comigo. O quanto à herança latina é forte e especial. A importância de manter o elo com essa lembrança, com essas pessoas e com essa história. Eles estavam certos em reverenciar o passado. Talvez nossa cultura tenha vocação para ser um Humbert Humbert desgraçado e eternamente encantado com uma Lolita que não só nunca se enamorou dele, como era sufocada e vilipendiada a cada momento vivido junto. Quando Nabokov escreveu Lolita, a maioria dos críticos disse que se tratava de uma crítica a mania americana de idolatrar o novo. Eu acho que essa crítica compete a todo o mundo ocidental atual.

É triste ver para onde nossa cultura caminha e a pouca importância do sacrifício voluntário ou não dos povos que nos antecederam para que bem ou mal desfrutássemos de uma estrutura que exalasse o mínimo de justiça, liberdade e inteligência. Amar também é conhecer. E nós? O que temos feito desse legado?

“Eneida” – Virgílio

Aqui você encontra todos os textos sobre a obra em questão:

Nota de Início – Impressões e considerações pré-leitura.

Nota de Conclusão – Impressões e considerações pós-leitura.

Relatório de Leitura – Um diário de leitura, com as dificuldades e particularidades da leitura de cada livro. O meu dia-a-dia com o livro e com a experiência de sua leitura.

Guia de Leitura – Dicas para facilitar a leitura, o entendimento da trama, e a melhor assimilação da obra.

”Eneida” – Nota de Início

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Eneias abandona Troia em chamas, Federico Barocci, 1598, Galleria Borghese, Roma.

O blog está indo mais rápido do que eu esperava (Amém! Que continue assim!), e para não fugir muito à ordem da lista – não que seja essencial segui-la – agora lerei o terceiro livro citado: “Eneida” de Virgílio.

 Mais do que um poema épico, este é um livro sobre o nascimento do ocidente. Não de mitos, de ídolos ou seu nascimento simbólico. Afirmo aqui o nascimento da sua identidade, a qual perdura até hoje. Lácio, o consolo o esconderijo. O ocidente, a porção de terra onde o sol se põe, a escuridão, a Hespéria, o refúgio. E ele continua sendo até hoje o refúgio sonhado por muitos exilados, perseguidos, e refugiados. Aqui onde a liberdade figura, não no seu ápice mais no melhor entendimento possível que se tem dela. E se o melhor que conseguimos fazer, nós, nossos ancestrais e nossas contribuições individuais, ainda está longe do ideal é porque aqui, ainda podemos refletir, sonhar, colocar em prática o que quisermos, nós nos permitimos isso. Aqui as sementes da mudança ainda podem germinar. Essa não é uma conquista individual, é coletiva. E a possibilidade da mudança pode ser o único patrimônio que ainda deixaremos aos que se seguirem a nós.

O Ocidente nasceu como um refúgio do velho mundo (Ásia e África) anterior ao velho mundo (Europa). Abandonar o que foi perdido e lutar para construir algo novo, conservando o que há de melhor. Esse é o sentido de Eneida, esses somos nós.

Estou cheia de vontade de ler este livro. A estrutura em versos, não me intimida tanto quanto deixar passar algum detalhe ou referência maior por não estar aclimatizada, ou possuir uma fluência tão grande assim em mitologia antiga. Sim, sei algo por causa do teatro, mas gostaria de saber muito mais. Espero que isso não comprometa a minha experiência de leitura. Ademais, tenho o Google e amigos prestativos que atendem meus telefonemas e prontamente ajudam-me neste particular. Talvez esta ansiedade seja exagerada, mas a sabedoria antiga é algo que ao mesmo tempo desperta curiosidade e fascina. Não tenho como não devanear…