O exercício de ler o “Livro do Desassossego” pede uma boa dose de concentração. Ao tratar-se, por assim dizer, de uma biografia sem fatos e, portanto, sem uma linha cronológica de acontecimentos.
Algumas vezes você vai encontrar a descrição, digamos, de uma tempestade batendo ameaçadoramente contra as janelas do escritório onde trabalha Bernardo Soares. No momento seguinte ele dirige-se a outro assunto, destila aforismos os mais complexos possíveis e depois volta com um comentário sobre as pessoas caminhando pela rua.
Quanto ao primeiro e ao terceiro tipos de trechos, tudo bem. O problema são os aforismos. Primeiro ele os deslinda com simplicidade, depois os apura com uma percepção surreal, e vai além, muito além do que qualquer um iria. Nesses momentos, não dá para simplesmente continuar a leitura.
Várias vezes deixei o livro de lado, para poder desfrutar, ou unicamente pensar no que havia acabado de ler. Difícil.
No dia-a-dia me deparava com alguma notícia sobre política, religião, filosofia ou artes que me remetia a Pessoa. E eu voltava para lá, morrendo de saudades de seus pensamentos, de onde ele me levou. Querendo conviver apenas com pessoas que fossem clones dele.
Tanto meme trash no Facebook, notícias horrorosas nos jornais, tantos desapontamentos com tudo, e eu tendo o privilégio de ler Fernando Pessoa.
Graças a ele pude pairar acima de tudo isso por alguns instantes. Encontrar paz, entendimento, sentido. Voltar a ter fé no ser humano. Vejo possibilidades, e por mais pessimista que seja seu ponto de vista, permito-me sonhar. Um mundo onde viveu uma mente que pode adicionar-me tanto, não pode estar totalmente perdido. Mário Quintana tinha razão quando disse: “Quem escreve um poema salva um afogado”.
Lembro-me de ler certo trecho e ter a necessidade de ir até a janela. Respirar. O peito doía em uma angústia boa. Até hoje dói um pouco. O título “Desassossego” não é gratuito. Ele consegue criar um desassossego em nós. E quem disse que isso é ruim?